Marcio Amaro/UOL
CLÉBERSON SANTOS
COLABORAÇÃO PARA ECOA, DE SÃO PAULO
“Eu tinha muita convivência com a minha avó. Ela plantava arroz, fava, feijão, café, tinha horta. Eu vivia essa vida, graças a Deus, de ter contato diretamente com os alimentos.
Com 15 anos eu saí de casa e tive que aprender a cozinhar. Quando eu fiz o meu primeiro feijão, que ficou delicioso, meu primeiro arroz, minha primeira farofa, eu me acabei, fiquei doida pelo mundo da cozinha. Eu me pergunto quem me ensinou a cozinhar e eu acho que foi a necessidade mesmo, acho que é um dom.
Vindo para o Rio de Janeiro, sempre via como desperdiçavam alimentos por aqui, isso me agoniava. Lá na Paraíba a gente aproveitava tudo. O que a gente não comia alguém passava e levava, a gente dava de comer aos animais na roça. Algumas sementes a gente jogava no quintal mesmo.
Quando eu pedi a Deus para ser uma cozinheira bem famosa, queria fazer uma cozinha afetiva, de resgate popular, com tudo aquilo que eu vivia com a minha avó. As pessoas não sabem a origem dos ingredientes, a história, quanto tempo ele levou até chegar à mesa.
A cozinha elitizada separa as pessoas, mas não, tem que ser amor, para unir. A terra é prova disso, quando você planta uma sementinha se forma uma rede ao redor dela para protegê-la. A mãe terra é genial.”
Marcio Amaro/UOL
Yakissoba de casca de banana, moqueca com caroço de jaca, bolo de bagaço de milho, lasanha de pinhão. Estas são algumas das receitas criadas por Regina Tchelly, uma paraibana de 39 anos e que há quase uma década ensina as pessoas a aproveitar integralmente a comida que leva à mesa.
Com apenas R$ 140, arrecadados entre moradoras da comunidade em que vive, o Morro da Babilônia, no Rio de Janeiro, Regina criou o Favela Orgânica. O projeto tem como objetivo modificar a relação das pessoas com os alimentos e, assim, evitar o desperdício.
O tanto de comida que era jogada fora nas feiras livres foi uma das coisas que mais assustou Regina quando ela desembarcou na Cidade Maravilhosa em 2001 para trabalhar como doméstica. E ela está certa: sobram motivos para se preocupar com o desperdício de comida no Brasil.
Segundo relatório do Instituto Akatu com dados da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) e do Embrapa, o Brasil joga fora 26,3 milhões de toneladas de comida por ano. Isso dá uma média de 130 kg de alimento por família no país e poderia satisfazer as necessidades alimentares de 11 milhões de brasileiros.
Buscando acabar com o preconceito que existe em consumir partes dos alimentos como casca, semente e talos, Regina atraiu ao Favela Orgânica não só os moradores da Babilônia, mas também chefs de diversas partes do Brasil e do mundo, além de ter o seu próprio programa de receitas na TV.
Regina Tchelly cresceu em Serraria, cidade de pouco mais de 6 mil habitantes no interior da Paraíba. Tudo era aproveitado pela família da paraibana, desde a semente até o próprio saquinho de papel em que compravam a comida.
“Não tinha essa coisa de embalagem na época, a gente levava o saquinho para comprar o feijão, a farinha. Quando não servia mais, a gente usava para acender a lenha do fogão”, relembra.
Desde que aprendeu a cozinhar, Regina passou a inventar também suas próprias receitas. No batizado da sua primeira filha, ainda em Serraria, em vez de fazer buchada, creme de galinha ou carne de porco, como era comum, ela fez uma lasanha de berinjela para a família. “Eu sempre chegava com as coisas mais naturais, nem tinha noção, era porque eu gostava de levar coisas diferentes mesmo”.
Com a filha nos braços e a promessa de receber um salário melhor como empregada doméstica, Regina desembarcou no Rio de Janeiro em 2001. E, apesar do choque com o desperdício de alimentos, então, sua reação só veio cerca de dez anos depois.
A ideia para o Favela Orgânica foi desenvolvida para um edital que dava R$ 10 mil a jovens empreendedores periféricos. “Foi aí que ganhei meu melhor ‘não’. Eles acharam muito complexo”.
Sucesso orgânico
O principal objetivo do Favela Orgânica é ensinar as pessoas a “modificar nossa relação com o alimento, devolvendo à terra o que ela nos dá”, segundo palavras da própria Regina. Isso é feito tanto por meio das receitas desenvolvidas no projeto quanto pelo processo de compostagem, também trabalhado na comunidade.
“Se eu compro um quilo de abóbora eu tenho que usar ela integralmente. Com a semente eu faço um leite, a polpa eu cozinho e bato para engrossar algum molho. A casca a gente pode ralar e colocar no arroz. O que eu não usar, coloco na composteira”, exemplifica a empreendedora, que garante que nada que é consumido na casa dela acaba indo para o lixo.
Com os R$ 140 que Regina arrecadou com.a vizinhança, ela abriu a primeira turma da oficina “Da Semente ao Talo”, um curso com 20 encontros que além das receitas e da composteira, também ensina a cultivar uma horta em pequenos espaços.
Foram seis alunos em sua primeira edição. Cresceu para dez, depois 15. “Na quarta semana a gente já tinha pessoa até do Japão visitando. O projeto ficou muito famoso rapidamente, com dois meses já apareceu na TV”.
Antes da pandemia, cerca de 60 alunos estavam participando dos cursos, a maioria crianças. Lá, elas aprendiam a fazer lanches, como salgadinhos e refrigerantes, de forma natural e saudável: “é muito legal a reação delas, elas vêm com preconceito, mas piram quando fica pronto”, comenta Regina.
Marcio Amaro/UOL
Além de sustentável, econômico
Ivonides Silva, 55, é cabeleireira e foi uma das alunas do Favela Orgânica. Mais do que isso, seu marido é dono do salão que o projeto ocupa atualmente. Toda vez que saía para trabalhar, ela encontrava Regina e os frequentadores do local participando de alguma atividade.
“Em um desses dias ela me perguntou se eu não queria fazer o curso. Eu só tinha dois dias de folga na semana, o domingo e a segunda, mas havia uma turma disponível nesses dias”, relembra. Ivonides passou a frequentar o projeto em 2018 e fez sucesso com o seu bolo de farinha de semente de abóbora.
“A gente aprende a valorizar tudo o que o alimento tem, e a dar mais valor ao nosso dinheiro também, porque a gente compra uma fruta e joga metade dela fora”, conta a cabeleireira, que passou a gastar menos com a feira depois do curso.
“Eu sei que vou usar tudo e vai render bem mais, não há necessidade de comprar um quilo. Posso comprar três, quatro inhames que vai render bastante. É uma economia bem grande que você acaba tendo.”
Após as oficinas, Ivonides passou a cultivar repolho, açafrão e pimenta em casa, só não conseguiu ter a sua própria composteira por falta de espaço.
Convidada para dar aulas às crianças e distribuir quentinhas durante a quarentena, ela define o Favela Orgânica como uma “tábua de salvação” na comunidade: “tem um impacto grande, todo mundo no morro vem aqui pegar ervas para fazer chá quando está gripado. É uma referência.”
De acordo com Regina, tanto o preconceito com o consumo integral dos alimentos quanto a dificuldade em se ter uma alimentação melhor partem de um mesmo problema: a falta de informação.
A empreendedora aponta que o desperdício de comida já faz parte da cultura alimentar do brasileiro e que o propósito do Favela Orgânica é mudar o olhar da população sobre a comida.
“Ainda existe muito preconceito, pessoas vêm falar ‘e eu sou bicho pra comer casca?’. Eu acho triste quando são as pessoas mais humildes, simples, que ficam com preconceito de comer. As grandes indústrias não vão facilitar isso”, diz Regina.
A empreendedora classifica a alimentação do brasileiro como “péssima”. “As pessoas só querem saber de industrializados, com tanta biodiversidade, tanta coisa gostosa que a gente tem”, critica. Ela vê, porém, as pessoas terem maior preocupação com a saúde desde o começo da pandemia.
Para ela, a população brasileira está desprotegida no que diz respeito à própria alimentação. “O governo não prioriza isso, se você tá comendo melhor é visível que terá mais saúde. Estamos num país que está voltando para a desnutrição infantil, para o mapa da fome.” A luta de Regina é para tentar reverter essa situação e mobilizar cada vez mais gente, com comida saudável no prato.