Regina Tchelly ensina como aproveitar o alimento de forma integral, sem desperdício, em uma gastronomia criativa e simples
Rio – Isca de casca de banana, coxinha de jaca, bolinho de talo de couve, pastel com mix de folhas, entre outros: esses são alguns dos quitutes da chef paraibana, Regina Tchelly. Fundadora do projeto Favela Orgânica, ela usa na cozinha o alimento de forma integral, sem desperdícios, e repassa seu conhecimento aos moradores das comunidades da Babilônia e do Chapéu Mangueira, ambos na Zona Sul do Rio, através de aulas e oficinas, transformando a vida da população local. Além da gastronomia criativa, o projeto também combate a fome, que atualmente assola 33 milhões de pessoas no Brasil, de acordo com a Rede Pessan, sendo três milhões só no Rio de Janeiro.
Regina saiu da Paraíba e veio para o Rio com 19 anos tentar ganhar a vida. Trabalhou como empregada doméstica por 11 anos, mas seu sonho sempre foi ser uma cozinheira famosa. Ao andar pelas feiras da cidade, ela percebeu que muitas frutas e verduras, apenas por estarem amassadas, por exemplo, eram desperdiçadas. “Eu queria fazer algo que pudesse modificar a nossa relação com os alimentos. Me dava muita agonia ver tanta comida não aproveitada. Isso ficou na minha cabeça e em 2011 eu desenvolvi e apresentei um projeto, em uma agência na época, que pudesse trazer benefício às favelas e à cidade. Foi aí que nasceu o Favela Orgânica, que trabalha com o ciclo do alimento, democratizando a comida de verdade”.
Regina Tchelly é fundadora do projeto Favela Orgânica, criado em 2011, que atua principalmente nas comunidades da Babilônia e Chapéu Mangueira
Ao conversar com os feirantes, explicando o desperdício, Regina disse que ouvia deles que muitos consumidores não ligavam. “Eu falava que não podia ser assim, eles também relatavam que ninguém se importava, que os clientes não queriam verduras ou frutas amassadas, arranhadas. Lá de onde eu venho a gente aproveita tudo, no interior principalmente. Tudo o que consumimos, aproveitamos também. Inclusive, fazemos até compostagem para colocar nas plantas”. Moradora do Babilônia, no Leme, Regina viu uma oportunidade de aproveitar os alimentos e ensinar para a sua comunidade uma metodologia saudável, criativa e econômica de fazer comida.
Segundo ela, o projeto Favela Orgânica é uma iniciativa que trabalha com a gastronomia criativa, seguindo uma linha do aproveitamento total do alimento, com nada de origem animal. “Aqui a gente ensina as pessoas a fazerem hortas em pequenos espaços com a própria semente dos ingredientes naturais que as pessoas têm em casa. Eu ensino as pessoas a fazer composto, que nada mais é do que alimento para a terra e uma fonte de renda extra também. Todo esse aprendizado ajuda a aumentar a quantidade dos ingredientes com o que se tem”.
Quando apresentou o Favela Orgânica para uma agência que oferecia uma bolsa de R$ 10 mil para o vencedor, Regina levou um não. “Era para eu ganhar um dinheiro para começar, mas eu levei foi um não bem grande. Mas, isso não me fez desistir, pelo contrário, só me deu mais força de vontade. Foi assim que nasceu o projeto, com apenas R$ 140 que foi arrecadado por vaquinha. Na primeira semana, foram só seis pessoas, depois 10, depois 15 e de repente tinham 40 pessoas. Fui ficando conhecida e em 11 meses ganhei um prêmio de mulheres empreendedoras”.
Soraia de Souza dos Santos, de 45 anos, moradora do Babilônia há 26 anos, é diabética, hipertensa e está acima do peso. Para ela, o projeto abriu um caminho de vida saudável e mais simples. “O Favela Orgânica mudou a minha vida. Ele me ajuda porque estou acima do peso e também, quando conheci, eu estava quase em depressão. Quando tive a oportunidade de participar dele, não pensei duas vezes. Não tenho condições financeiras, então para mim é muito importante aprender tudo com a Regina”.
Regina Tchelly conta que sentia muita agonia em ver tanta comida não aproveitada
Nathália Cesar Nunes, nutricionista do Favela Orgânica, explicou que fazer acompanhamento nutricional é fácil quando o paciente adquire e compra tudo que é solicitado na consulta. No entanto, quem não tem condições de arcar com as despesas, precisa de uma atenção especial. “Essa parcela da população, muita das vezes, vive em condição precária. A gente procura passar algo básico, que o morador possa fazer em casa mesmo, que seja nutritivo e barato. Por exemplo, há muita jaca em árvores por aqui. Quando ela cai no chão, acaba que muitas pessoas desperdiçam, então é um ponto que dá para aproveitar. Nós vemos o que tem na comunidade, nos arredores e o que é plantado no chão das favelas, becos e vielas, e fazemos uma dieta baseada no possível”.
A nutricionista ressaltou ainda que há muitas plantas alimentícias não convencionais que podem ser utilizadas na alimentação, entre elas algumas que nascem nas ruas das próprias comunidades. “A gente indica uma alimentação com plantas, jacas ou naquela frutinha que eles conseguem plantar dentro de casa. Vamos sempre pelo caminho mais acessível porque muitos não têm nem água direito. Os moradores da comunidade acham que fazer dieta é caro, assim como mais da metade da população do país. Nós queremos desmistificar isso”.
De acordo com a última pesquisa da Rede Pessan, além da fome, a insegurança alimentar grave está presente em 15,9% dos lares do estado, ou seja, 2,7 milhões de fluminenses. Apesar de atingir mais as regiões Norte e Nordeste, a maior concentração de pessoas que passam fome em números absolutos está no Sudeste, região mais populosa do país.
O nutrólogo Sandro Ferraz ressaltou que um dos problemas principais da insegurança alimentar que está atrelado a pessoas em vulnerabilidade social, é o problema relacionado a falta de equilíbrio na alimentação, importante para o desenvolvimento do corpo humano. “Na maioria das vezes, nessas situações, não há como gerar um equilíbrio em fontes de proteínas, gorduras e carboidratos. Eles são muito importantes para a saúde como um todo, visto que é necessário proteína para ganhar massa muscular e gordura e carboidrato para percentual energético do corpo”.
Ele também se atentou ao fato de que enlatados e embutidos industrializados, como salsicha, miojo, entre outros, que acabam sendo mais barato no mercado, são cheios de sódio e trazem diversos malefícios à saúde. “O grande problema dessas opções baratas é que elas não têm valor nutritivo. Além disso, possuem uma enorme quantidade de aditivos químicos e de gorduras, podendo prejudicar o paciente. São calóricos e ricos em açúcar”.
No programa, Viviane verifica a prevalência da depressão e ansiedade como fatores psicológicos que interferem nos comportamentos alimentares. “Há um trabalho psicoeducativo de empatia com os alimentos. Acreditamos que eles nutrem o corpo, mas a psicologia acolhe o ser humano por inteiro, facilitando qualquer mudança que se faça necessário”.
Nutrição e educação nas escolas
Além de promover aulas e workshops para moradores da comunidade, o projeto Favela Orgânica também trabalha o ciclo do alimento dentro dos colégios. Na Escola Dom Cipriano Chagas, em Botafogo, os alunos – que são de comunidades carentes como Babilônia, Chapéu Mangueira, Pavão-Pavãozinho, entre outras – aprendem a origem dos alimentos, como plantá-los, como usar cada um de forma integral dentro das receitas e os impactos financeiros que essas medidas possuem, tanto na economia pessoal quanto na possibilidade de aumentar a renda.
Um dos principais temas que o projeto Favela Orgânica aborda no programa de nutrição educacional nas escolas é como evitar o desperdício de alimentos e a preservação do meio ambiente. De acordo com a gestora da sociedade Providência e da Escola Dom Cipriano Chagas, Anna Gabriela Malta, a criança tem direito a três refeições de segunda a sexta. “Geralmente, a escola é o lugar onde elas têm as principais alimentações do dia. Junto com o projeto também conseguimos dar uma segurança alimentar, com equilíbrio e saúde. Além disso, o programa também ajudou as merendeiras a elaborar novos cardápios, aproveitando tudo do alimento, e levou o hábito de uma alimentação saudável para dentro de casa”.
Em paralelo, durante as aulas há também nutricionistas que entram nas salas e explicam como fazer determinado prato, por exemplo, com comidas frescas e orgânicas. “A nossa expectativa com esse programa é que as crianças tenham uma reeducação alimentar, ampliando o paladar delas, conhecimento e aproveitamento integral dos alimentos. As aulas de culinária que as nutricionistas oferecem são muito importantes também para a criação de novos hábitos, como o prazer em cozinhar a própria refeição”, disse Anna.
Por atenderem crianças de baixa renda, Anna explicou que é necessária uma conscientização acerca de produtos enlatados e industrializados que muita das vezes são opções rápidas e baratas para as famílias. “Queremos tirar isso da cabeça deles. Esse tipo de comida não é saudável e prejudica demais o corpo humano. A ideia é darmos opções fáceis e simples de alimentação saudável”.
A Escola Dom Cipriano Chagas é filantrópica e atende crianças em situação de vulnerabilidade social de 3 a 11 anos de idade.