Projeto dá aula sobre o aproveitamento integral dos ingredientes e fornecer acompanhamento nutricional e psicológico
RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – É dentro de uma casa repleta de temperos e hortaliças no morro da Babilônia, na zona sul do Rio de Janeiro, que a chef paraibana Regina Tchelly, 41, semeia a cultura alimentar contra o desperdício e a fome.
No imóvel alugado na comunidade, ela busca enraizar a premissa principal do Favela Orgânica, projeto criado pela nordestina para ensinar aos moradores da Babilônia sobre o ciclo e o aproveitamento integral dos alimentos. “Eu ensino as pessoas a não passar fome. Eu ensino a plantar, colher e empreender.”
Outras comunidades no Rio também desenvolvem ideias sustentáveis, como o projeto Teto Verde Favela na comunidade Parque Arará e o biossistema ecológico para tratar o esgoto na comunidade Vale Encantado, no Alto da Boa Vista, zona norte.
Já se passaram 13 anos desde que a cozinheira que deu início à iniciativa, em setembro de 2011. Na época, ela decidiu criar o projeto dentro de sua própria casa, também na Babilônia. Com R$ 140, começou a dar aulas sobre como aproveitar as cascas de frutas e talos de hortaliças que antes seriam jogados fora.
“A fome e a pobreza são um negócio, e a gente precisa parar com isso. A gente é a última geração a combater o aquecimento global. Isso me aflige muito, porque quem se prejudica mais são as favelas e as periferias”, afirmou a chef.
Nascida em Serraria, cidade com 6.000 habitantes a 100 km de João Pessoa (PB), Regina se mudou para o Rio, no início dos anos 2000, aos 19 anos. A mudança se deu para trabalhar como empregada doméstica para uma família no Leme.
Nessa época, ela já sonhava em empreender, e a ideia para a iniciativa surgiu ao ver a quantidade de comida que era descartada ao final das feiras de rua.
“Sempre quis ser uma cozinheira muito famosa, que pudesse modificar a nossa relação com os alimentos usando uma linguagem popular”, disse.
Regina ainda relembra que conseguiu a verba para começar o projeto com o apoio dos vizinhos. “Foram os próprios moradores que me ajudaram com o dinheiro. Com esses R$ 140 eu comprei dez aventais, dez facas e dez tábuas. As cascas e os outros temperos, eu tinha. Daí surgiu o Favela Orgânica.”
Foram seis alunos na primeira semana, mas não demorou muito para o número saltar para dezenas. Hoje, o projeto atende a cerca de cem pessoas. Destas, 40 são fixas que, além de participarem das aulas, recebem acompanhamento nutricional e psicológico.
O Favela Orgânica conta com a parceria voluntária de 35 profissionais entre psicólogos, nutricionistas e permacultores.
Levou cinco anos para que o projeto saísse da residência de Regina e fosse para o espaço que ocupa hoje. Fica em uma casa ampla, com uma grande cozinha, onde ocorrem as aulas, e uma varanda dedicada às dinâmicas de terapia em grupo e o acompanhamento nutricional. Por todos os lados, há hortas plantadas pela paraibana e os participantes.
Para chegar ao espaço, é só seguir o caminho traçado pelas receitas de Regina desenhadas nos muros das vielas da Babilônia. As hortas comunitárias, plantadas e usadas pelos moradores da comunidade, também fazem parte da trilha à sede do projeto. O visual forma uma espécie de gigante livro de receita ao ar livre.
O envolvimento dos vizinhos do projeto também se dá não só pela participação deles nos cursos e atividades, mas também na doação de alimentos que antes seriam descartados. A casca do alho é usada para fazer sal temperado. A da banana, por sua vez, vira uma deliciosa compota. Ambos podem servir de comida para os demais participantes, ou serem vendidos por eles mesmos. Assim, segundo Regina, aprendem também a ter independência financeira.
“Dar cesta básica não combate a fome, só de forma imediata. Eu ensino que se a pessoa só tem dois copos de feijão, ela pode comer um copo e usar o segundo para fazer dez bolinhos e vender. Se ela vender por R$ 1 cada bolinho, ela consegue um quilo de feijão a mais”, disse a chef.
E dá outro exemplo: “Quatro porções de suco verde [ensinados nas aulas] saíram a R$ 2,51. Eu oriento a eles venderem a R$ 15 cada. E ainda mostro como tirar fotos dos pratos para ajudar na venda”, completou.
Os recursos para manter o projeto ainda saem do bolso de Regina, que banca o Favela Orgânica com o que recebe por cursos, workshops e serviços de buffet.
“Aqui eu pago aluguel, e na minha casa também. Faço esse trabalho todo e ninguém me patrocina. Agora eu estou captando recursos”, disse. Agora, busca outros tipos de financiamento para ampliar o projeto.
Um alívio na pandemia
Foi durante a pandemia da Covid que o Favela Orgânica ganhou um novo ânimo. Preocupada com a saúde dos moradores da comunidade, Regina desenvolveu alguns programas dentro do projeto, que incluíam o atendimento psicológico e a distribuição de quentinhas pela região.
“Fui paciente do Favela Orgânica, sou até hoje”, afirmou Maria Benedita, 62. Conhecida pelos vizinhos como Mary, ela participou das aulas de aproveitamento completo dos alimentos durante a crise sanitária, além do acompanhamento nutricional.
“Na época, a Regina trabalhou com quentinhas orgânicas, restauradoras da saúde. Isso ajudou muito, foi um abraço, um carinho e um acolhimento muito gostoso para os moradores da comunidade, que estavam enfraquecidos por causa da pandemia”, disse a moradora.
Outro programa foi o curso online “Faça e Venda: Sem Desperdício”, que ensinava sobre o ciclo completo do alimento, da colheita ao descarte adequado, sem desperdício. Com a linguagem acessível, termo usado pela própria Regina, as aulas eram voltadas para lideranças comunitárias para que elas replicassem os aprendizados nas áreas em que moram. Mais de 300 pessoas foram capacitadas.
“Eu parei de usar o termo comida de verdade, porque ficou banal. Como eu vou falar ‘comida de verdade’ para quem só tem miojo em casa? Nesse caso, com uma hortaliça eu posso ajudar a melhorar [a alimentação dessa pessoa]”, afirmou a chef.
O Favela Orgânica também criou a websérie “Cesta Básica Educativa”, com 30 episódios que ensinavam como fazer com que os alimentos que eram doados rendessem mais. As receitas ainda estão disponíveis no canal do YouTube do projeto.
Escrito por: Camila Zarur e Aléxia Sousa
Folha de São Paulo | Fonte