Regina Tchelly na sede da Favela Orgânica, no Rio de Janeiro. Foto: Leonardo Martins Dias

Nas comunidades da Babilônia, Regina Tchelly conseguiu ampliar a duração de uma cesta básica de dez para trinta dias, aproveitando 100% dos alimentos

Matéria de Leonardo Martins Dias
Publicada no dia 30 de novembro de 2022
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Regina Tchelly (41 anos) tinha 19 anos quando imigrou do pobre Nordeste do Brasil em busca de um salário melhor. Ela trocou os 11 euros mensais que ganhava como empregada doméstica na Paraíba pelos 42 que recebia no Rio de Janeiro. Ao chegar à cidade do Rio de Janeiro, localizada no sudeste do país, em 2000, Tchelly ficou impressionada com a quantidade de lixo nas ruas. “Depois das feiras, sobravam montanhas de comida que, na Paraíba, aproveitávamos”, explica. Sem saber, esta primeira percepção, fruto da riqueza do multiculturalismo, construiu uma ponte para o seu futuro como empreendedora.

Em 2011, as comunidades da Babilônia, favela carioca onde Tchelly mora e empreende, no bairro carioca do Leme, fizeram uma vaquinha para fortalecer o projeto gastronômico Favela Orgânica. Compraram dez uniformes, tábuas e facas. Tchelly passou a produzir pães com partes da banana que costumam ser descartadas, ceviche de talo de brócolis, farinha ou almôndegas com beterraba, leite de semente de abóbora, ou a reaproveitar partes do coco, cuja retirada é um grande problema para a Prefeitura devido ao seu peso e volume. “Meu restaurante nunca teve cardápio, sempre criei os pratos com o que temos no momento, como na Paraíba.”

Mural de receitas da Regina Tchelly no Morro da Babilônia. Foto: Leonardo Martins Dias

Hoje, a Favela Orgânica conta com hortas sustentáveis ​​e diversas iniciativas. “Aqui sirvo refeições, faço entregas, vendo congelados, ensino gastronomia sustentável e empreendedorismo, entre outras iniciativas. Por exemplo, meus clientes me mostram suas geladeiras com a câmera do celular e eu explico como aproveitar 100% dos alimentos de forma saudável, nutritiva e rica. Consigo estender a duração de uma cesta básica de dez para trinta dias. Além disso, estou produzindo um aplicativo para reduzir o desperdício. O pouco que sobra volta para a terra como composto. Vendo meio litro de biofertilizante por um euro e vinte centavos, e um quilo de fertilizantes naturais por noventa centavos. Transformo o óleo de fritura usado em sabão”, desenvolve.

Tchelly atende tanto na favela quanto no asfalto (termo usado nas favelas para se referir à parte formal da cidade). Mas o reconhecimento no Brasil não veio até que seu projeto ganhasse visibilidade na mídia devido ao interesse europeu. Os principais chefs de Turim a levaram três vezes à Itália para que Tchelly os treinasse. “No Brasil não me valorizavam. Ganhar visibilidade e reconhecimento na Europa me motivou muito a continuar com a Favela Orgânica. Isso me inspirou a realizar meus sonhos.” Abrindo os braços na horta orgânica e se virando, Tchelly afirma, sorrindo e com muito orgulho: “Olha o que podemos fazer quando somos capazes de sonhar.”

A Favela Orgânica, apesar de ser categorizado na dimensão ambiental da sustentabilidade, é também um projeto social. “Faço uma gastronomia mais humanizada, amorosa e inclusiva. Eu uso a comida para unir as pessoas. Compartilho receitas nos muros da favela. Durante a pandemia distribuí mais de 600 pratos e ensinei a aproveitar os alimentos. Eu educo e tiro crianças das ruas e da vulnerabilidade ao crime. Eu promovo o que as empresas chamam de ’empreendedorismo’ para promover a geração de renda entre os desempregados. Duzentas pessoas de todo o Brasil se inscreveram na primeira edição do meu curso online. Resumindo, minha vida está realmente refletindo em como consumir e acumular menos e buscar autoestima. Por que comprar tanta roupa e comida ou gastar tanta água?”, questiona-se.

Minha vida é refletir em como consumir e acumular menos e buscar autoestima. Por que comprar tanta roupa e comida ou usar tanta água?
Regina Tchelly

Tchelly desconhece a Agenda 2030 e faz críticas às empresas. Seus comentários lembram o filme Plácido, de Luis Berlanga, em que o rico recebe um pobre para jantar em sua mesa no Natal: “As empresas têm que pensar menos em seus benefícios. Eles já extraíram o suficiente do planeta e das pessoas. Seus gerentes já acumularam recursos suficientes. Eles realmente deveriam nos apoiar, não apenas para marketing. A economia circular e esses modismos podem ser bons, mas há um longo caminho a percorrer porque muitas vezes quem os move tende a fazê-lo para acumular dinheiro. Eles nem mesmo reduziram seu consumo de verdade como fazemos aqui. Estamos todos cansados ​​de discursos de sustentabilidade, de ajudar os pobres e salvar o mundo… Será mesmo que existem pessoas que acreditam nisso?”, reflete.

Por todos esses motivos, Tchelly não colabora com empresas. “No final é sempre a mesma coisa. Eles querem estar na foto. Eles usam nossa humanidade para lavar suas imagens desumanas e insustentáveis. Eles fazem negócios em torno da fome e promovem políticas de bem-estar que não trazem nenhuma mudança, mas perpetuam a insustentabilidade. Se você deixar, eles ficam com tudo. Eles competem para manter tudo sem limites. Querem mais e mais e mais… Aproveitam a pandemia, as crises… Que sustentabilidade é essa? Aqui confiamos na colaboração e no sentido de comunidade”, consolida.

“Existem milhares de exemplos”, diz ela. “Os representantes das empresas vêm aqui dizendo que querem nos ensinar a empreender. No entanto, seu orgulho os impede de entender o que sabemos. Aqui empreendemos desde que nascemos, para sobreviver, sem recursos e com criatividade, como as empresas são incapazes de fazer. Precisamos amplificar nossa própria voz, por exemplo, por meio de entrevistas que são publicadas na mídia. Isso aumenta nossa autoestima e nos permite acreditar em nossos sonhos. Precisamos de autonomia, educação de qualidade, que não é o que as empresas ou a administração pública nos trazem”, denuncia. Sobre as universidades, diz que estas a apoiam: “Os nutricionistas vêm investigar o que fazemos e nos oferecem consultas gratuitas, que não podíamos pagar porque custam cerca de cem euros”.