Regina Tchelly, fundadora da Favela Orgânica, foi destaque da editoria “História de sucesso” da Revista do Sustentarea do mês de abril de 2021. Leia a matéria abaixo ou clique aqui para baixar o conteúdo completo:
O ciclo da vida de Regina Tchelly
Beatriz Machado Martins e Jennifer Tanaka
O desperdício de alimentos é um dos grandes problemas dos sistemas alimentares atuais. Segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), entre um quarto e um terço dos alimentos produzidos anualmente para o consumo humano se perde ou é desperdiçado. Calcula-se ainda que esta quantidade de alimentos seria suficiente para alimentar 2 bilhões de pessoas. No Brasil, esse cenário se repete e convivemos com duas realidades que não podem ser normalizadas: a fome e o desperdício.
Em 2020, o Brasil voltou para o Mapa da Fome e, recentemente, a insegurança alimentar se agravou devido à pandemia de COVID-19. Os dados mais recentes divulgados pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (PenSSAN), em abril de 2021, indicam que 19 milhões de brasileiros passam fome.
Por outro lado, 12 milhões de toneladas de alimentos são jogados fora todos os anos. Uma grande parte do desperdício ocorre nos domicílios, visto que partes comestíveis e nutritivas dos alimentos são jogadas fora, como as cascas, os talos e as sementes. Mas o problema não consiste apenas na definição do que é ou não comestível.
A desconexão com os alimentos e principalmente com o seu ciclo fez com que as pessoas passassem a enxergá-los como mercadorias que podem ser descartadas. No entanto, essa forma de pensar nunca foi aceita pela paraibana Regina Tchelly, fundadora do projeto Favela Orgânica, sediado no Rio de Janeiro.
A história de Regina e seu trabalho na área de alimentação e sustentabilidade é com certeza uma grande história de sucesso. Regina é cozinheira, empreendedora social e pioneira na fundação de um projeto que busca transformar a relação das pessoas com os alimentos. A iniciativa visa ao mesmo tempo evitar o desperdício, combater a fome e também cuidar do meio ambiente. O projeto Favela Orgânica nasceu em 2011 nas comunidades da Babilônia e do Chapéu Mangueira, na zona sul da cidade do Rio de Janeiro, com um investimento inicial de apenas 140 reais, mas seus frutos já ultrapassaram as fronteiras brasileiras.
Nascida em Serraria, no interior da Paraíba, aos 20 anos Regina se mudou para o Rio de Janeiro, onde trabalhou como empregada doméstica por onze anos. Contudo, o seu sonho de ser cozinheira, unido à sua insatisfação ao ver tanto alimento sendo jogado fora nas feiras da cidade, fez com que ela batalhasse pela construção de seu próprio projeto.
Conciliando trabalho, maternidade e a vida em uma nova cidade, Regina fez um curso de culinária e em agosto de 2011 prestou o concurso da Agência Redes para a Juventude. Em busca do prêmio de 10 mil reais, ela apresentou pratos inovadores, tais como farofa do amor e rocambole de chocolate com geleia de casca de maracujá. No entanto, a banca avaliadora concluiu que o projeto ainda precisaria ser melhorado. E foi esse “não” que acabou fazendo com que Regina, mesmo sem qualquer financiamento, colocasse o seu sonho em prática.
Ainda hoje o projeto é feito de forma independente, visto que não conta com o auxílio de pessoas públicas ou instituições governamentais. No mês seguinte o projeto ganhou forma. Dentro da sua própria casa, Regina recebeu suas primeiras seis alunas, mães e empregadas domésticas, para um encontro sobre como aproveitar os alimentos que tinham na sua geladeira. Em entrevista para esta matéria, Regina conta que o nome Favela Orgânica revela por si só a missão do projeto: “Eu queria mostrar as coisas boas que existem dentro de uma favela, eu acho esse nome potente” e “orgânica por causa de organização, organizar o consumo, organizar o ciclo do alimento, organizar as minhas ideias. E a vida é orgânica, a gente respeita os alimentos”.
Não demorou muito para que o seu trabalho ganhasse visibilidade. O público das oficinas foi crescendo e em um ano de projeto, a convite do fundador do movimento italiano Slow Food, Carlo Petrini, Regina já estava na Europa palestrando para chefs de todo o mundo. Regina relata que o sucesso e o reconhecimento merecidos também vieram acompanhados de preconceitos e desafios. Sua história reflete uma quebra de paradigmas e representa inúmeras mulheres do Brasil e do mundo. Como ela diz, “é muito bom ter uma mulher nordestina, ex-empregada doméstica, de uma favela, que pensa no contexto do ciclo do alimento, com aproveitamento integral, devolvendo para a terra o que ela nos dá e principalmente na atual situação em que estamos vivendo”.
Desta forma, ao trabalhar com o ciclo da vida, Regina consegue ir além e propõe uma nova forma de pensar e refletir. O consumo consciente se une ao aproveitamento integral dos alimentos e ao contato com a terra. Assim, por meio do plantio e da compostagem, a iniciativa ensina a necessidade de devolver para a terra aquilo que ela nos ofereceu. Além disso, a Favela Orgânica também atua em rede fortalecendo os pequenos produtores locais, o comércio de orgânicos, as feiras livres, e busca sempre unir as pessoas por meio dos alimentos.
Não parece exagerado enfatizar que toda essa dedicação e anseio por mudanças veio de uma mulher, mãe de três meninas, que acredita que a sua missão na terra é “fazer acontecer e ajudar as pessoas a enxergarem de dentro para fora”.
Essa missão tão nobre vem se cumprindo e, em 2015, na Conferência Mundial das Mulheres, organizada pelo Stati Generali delle Donne em Milão na Itália, ela recebeu o prêmio “Donne Che Ce L’Hanno Fatta”, cuja tradução em português significa “Mulheres que Conseguiram”. Em 2019, com o objetivo de democratizar o conhecimento e o acesso a uma alimentação saudável, um dos projetos do Favela Orgânica foi a criação de um livro de receitas ao ar livre, onde, pelos muros do Morro da Babilônia e Chapéu Mangueira, dicas e receitas foram pintadas, gerando grande repercussão na mídia e na comunidade.
Além disso, Regina apresenta, desde 2017, o programa Amor de Cozinha (Canal Futura), no qual ensina comidas típicas do cotidiano, sempre com a premissa de aproveitar completamente os alimentos. Para além de tantas conquistas em dez anos de Favela Orgânica, a empreendedora compartilha que o seu maior sonho é ter uma escola de gastronomia do ciclo dos alimentos.
Ela, livres, e busca sempre unir as pessoas por meio dos alimentos. Não parece exagerado enfatizar que toda essa dedicação e anseio por mudanças veio de uma mulher, mãe de três meninas, que acredita que a sua missão na terra é “fazer acontecer e ajudar as pessoas a enxergarem de dentro para fora”.